O Amor Não é só Sentimento: É uma Força de Caráter que Constrói Mundos
- Larissa Morangoni

- 27 de out.
- 5 min de leitura

Por que a Psicologia Positiva precisa olhar para as periferias, os Andes e as economias informais para entender a potência real do amor?
Se eu te disser que o amor é uma força de caráter, você pode pensar na paciência com seu parceiro, na bondade com um estranho. Não está errado. Mas e se eu te disser que essa visão, embora bela, é insuficiente? Que estamos olhando para o amor com as lentes de um mundo individualista?
A Psicologia Positiva, na qual me baseio, estuda as forças que permitem florescer o indivíduo e as comunidades. E hoje quero convidá-los a olhar para o amor com novos olhos – os olhos de pensadores latino-americanos que nos mostram que o amor é, antes de tudo, um ato de coragem política e um instrumento de construção de realidade.
1. Leopoldo Zea: O Amor como Ato de Rebeldia Identitária
O filósofo mexicano Leopoldo Zea não falava do amor interpessoal. Ele falava de um amor projetado no espelho. Para ele, o desafio fundamental da América Latina após séculos de colonização era deixar de ser o "outro" da Europa, a cópia inferior. A saída? Um amor por si mesma.
Esse amor é a força de caráter que nos leva a afirmar nossa história, nossa cultura mestiça e nossa maneira de ser, não como um defeito, mas como um projeto válido de humanidade. É o antídoto contra a autoaversão colonial.
Frases de Leopoldo Zea (que me emocionam):
"Amar é deixar de ser colônia dentro de si mesmo”
“Amar é admitir que o outro tem algo a dizer, e que esse algo me completa”
Na prática: É a força que um paciente encontra para deixar de se envergonhar de suas origens e abraçar sua história como fonte de resiliência. É a comunidade que valoriza seu saber tradicional em vez de desprezá-lo.
2. María Lugones: O Amor Mundano como Viagem Corajosa
Se Zea nos convida a nos amar, a filósofa argentina María Lugones nos ensina como amar o outro. Seu conceito de "amor mundano" (world-traveling love) é revolucionário: o amor não é um feeling, mas uma ação, uma disciplina.
Lugones diz que nós habitamos "múltiplos mundos" sociais (o do trabalho, da família, da rua). Amar, nessa visão, é se dispor a "viajar" para o mundo da outra pessoa – especialmente daquela que é oprimida e diferente – com uma curiosidade humilde e autêntica. É um risco, porque você se permite ser transformado por essa viagem. É a antítese do olhar colonial, que só enxerga o outro a partir de si mesmo.
Frases de María Lugones:
"Amo-te quando vejo que me moves a agir no mundo de modo a aliviar a tua opressão... Amo-te quando me arrisco a ir para o teu mundo, a ver-te como tu te vês, a conhecer-te como tu te conheces." - mundo travessia: prática de entrar no universo do outro sem colonizá-lo ou reduzí-lo a estereótipos
“Amar mundano é se arriscar a ser transformado pelo outro, enquanto se transforma o mundo juntos” - reconhecimento da pluralidade
“A capacidade de viajar para os mundos existenciais do outro , reconhecendo sua humanidade plena em contextos de opressão, e agir em conjunto para desmantelar sistemas de dominação” - amor como ação política: compromisso de luta conjunta, em reciprocidade (o que não é caridade)
Na prática: É a força de caráter que leva um terapeuta a tentar genuinamente entender o universo único do seu paciente, por exemplo. É a decisão de, num conflito, tentar enxergar a situação pela lógica do outro, não apenas pela sua.
O Afeto como Moeda e o Trabalho Invisível
Agora, vamos descer do conceito e entrar na casa, no bairro. Já parou para pensar naquelas redes de apoio onde uma pessoa cuida do filho da outra, empresta um pouco de açúcar, ajuda a consertar um portão?
O peruano Gonzalo Portocarrero fala do "amor serrano". É um amor que se expressa na reciprocidade, no "hoje por você, amanhã por mim". Não é um sentimento abstrato, mas uma prática de sobrevivência e cuidado mútuo, típica das comunidades andinas. É a força de caráter que entende que ninguém é uma ilha.
Paulo Henrique Martins, no Brasil, vai fundo nisso com seu conceito de "economia afetiva". Ele mostra que o afeto é a moeda das economias informais. O amor, nesse contexto, cria dívidas – mas não no sentido negativo. Cria uma rede de obrigações e confiança que sustenta comunidades inteiras. É uma força de caráter que prioriza o vínculo sobre o lucro.
E quem sustenta essas redes? Em grande parte, as mulheres. Aqui, a obra da argentina Verónica Gago é essencial. Ela desvenda o "trabalho invisível" – aquele trabalho de cuidado, organização comunitária, conciliação, regulação emocional alheia e sustentação da vida que, não por acaso, é historicamente não remunerado e femino. Esse trabalho é, em sua essência, amor em ação. É a força de caráter de quem sustenta o mundo nos ombros, mesmo que ninguém veja os rastros.
Mapas do Afeto: A Geografia Viva das Relações
E como navegar por esse novo mundo que o amor constrói? A ideia de "mapas do afeto", inspirada no antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e em perspectivas indígenas, nos oferece uma bússola radicalmente diferente.
Esses mapas não são feitos de ruas e países, mas de vínculos e memórias. Eles nos convidam a:
Mapear pelo parentesco relacional, não só biológico: Quem é da sua família? Muitas vezes, são os "tios do coração", os "irmãos de jornada" que nos escolhemos e que nos escolheram. A força de caráter está em reconhecer e nutrir esses laços.
Entender que os lugares têm alma: A praça onde você brincava na infância, o rio onde pescava com seu avô, o bar onde se curou de uma paixão... estes são lugares-personagem na sua história. O afeto não está apenas nas pessoas, mas impregnado na geografia, criando uma paisagem afetiva que nos constitui.
Estender o afeto para além do humano: O afeto se estende ao animal de estimação que é um companheiro, à planta que se cuida, à montanha que se respeita. O mapa do afeto é multiespécie.
Seguir esse mapa é um ato de amor revolucionário. É a força de caráter de quem se guia pela geografia viva dos seus afetos, e não pelo mapa frio da produtividade e do consumo.
Conclusão: O Amor como Ação Corajosa
Então, quando falamos de amor como força de caráter na Psicologia Positiva, não podemos reduzi-lo a uma emoção positiva. O amor, na visão latino-americana, é:
Uma afirmação identitária contra a colonialidade (Zea).
Uma viagem corajosa para o mundo do outro (Lugones).
Uma prática comunitária de sobrevivência (Portocarrero).
O alicerce de economias informais baseadas na confiança (Martins).
O trabalho invisível que sustenta a vida (Gago).
A cartografia viva que nos conecta a pessoas, lugares e seres (Viveiros de Castro/Perspectivas Indígenas).
Exercite essa Força:
Na próxima vez que você pensar em amor, pergunte-se:
Quem compõe o meu "mapa do afeto"? (Pense em parentes do coração, amigos-âncora, lugares sagrados da sua memória).
Como posso praticar o "amor mundano" de Lugones? (Tentando entender de verdade o ponto de vista de alguém com quem discordo).
Que "trabalho invisível" posso reconhecer e valorizar? (Agradecendo a quem amortece, planeja e organiza a vida coletiva).
O amor, nessa visão ampliada, é a mais prática e revolucionária das forças de caráter. É a que nos lembra que, antes de qualquer coisa, somos tecelões de vínculos significativos e construtores de mundos comuns possivelmente bons.





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